Estadão publica artigo sobre microsseguros assinado por Solange Beatriz

Estadão - Solange Beatriz Palheiro Mendes*

O debate sobre formas de reduzir as vulnerabilidades dos mais pobres é rico em propostas, ideológico por vezes, mobilizador sempre, mas pouco efetivo na prática.  Os números da desigualdade social falam por si. É nesse cenário que o microsseguro se sobrepõe como resposta assertiva em todo o mundo, ao ampliar a rede de proteção das pessoas, mitigando os riscos de queda abrupta na pirâmide social, em razão de infortúnios aos quais todos estão sujeitos (morte, invalidez, acidentes pessoais, destruição da moradia etc.).

No Brasil, após anos de intensos debates entre mercado, especialistas estrangeiros, Congresso Nacional e o órgão de supervisão de seguros, a regulamentação do microsseguro saiu no começo de 2012, com seis normativos sobre a matéria (Circulares Susep nos 439 a 444) e enormes expectativas de expansão.  Desde então, o microsseguro avança, contudo, aquém de seu potencial no País, cercado de escalas ou turbulências em seu plano de voo nestes oito anos de mercado.  Até aqui, conviveu com uma severa crise econômica (2015/2016), taxas de crescimento do PIB baixas nos anos seguintes e, agora, uma nova recessão provocada pela pandemia e seus danos sobre empregos, renda e contração de toda atividade econômica.

Não é fácil crescer em cenário econômico recessivo, todos sabem. Mas é preciso reconhecer outros fatores que retardam a evolução do microsseguro: desconhecimento de seus benefícios, renda, desconfiança e ausência de oferta, comunicação, e programas assertivos de educação em seguros.

É no campo da regulação, em especial, que há contribuições relevantes à expansão do microsseguro. Hoje, por exemplo, o microsseguro e os produtos massificados travam uma velada concorrência, o que, na prática, faz com que a arrecadação do primeiro pule para o outro. Essa convergência entre esses segmentos, notória, está entre os alvos de aperfeiçoamento do marco regulatório do microsseguro planejados pela Superintendência de Seguros Privados (Susep).

A ideia é colocar cada coisa em seu lugar. Hoje, ainda existem produtos de baixo tíquete e capitais similares ao do microsseguro sem serem convertidos, ou seja, permanecem na linha de apólices tradicionais. Esse fato talvez indique que ainda haja oportunidade para aprimorar o marco regulatório do produto, conferindo-lhe mais flexibilidade, incluindo novas coberturas e redação ainda mais simplificada dos seus bilhetes.

O microsseguro difere dos seguros tradicionais principalmente por ter limites máximos de garantia, capitais segurados e/ou benefícios restritos a um teto, o que implica menor valor do prêmio cobrado, além de estar condicionado a um menor prazo para pagamento das indenizações (10 dias corridos em contraste com os 30 dias do seguro tradicional) e de poder ser vendido em canais alternativos como correspondentes financeiros, varejistas, entre outros. Danos pessoais e materiais são coberturas típicas do microsseguro. Hoje, há apenas quatro microsseguradoras, mas grande parte da receita ainda está na carteira de seguradoras convencionais que obtiveram autorização para atuar nesse segmento. 

Olhando no entorno, o avanço do Sandbox Regulatório da Susep e a revisão das regras de capitais proporcionais são outras ações que, quando se materializarem e de forma indireta, poderão também ajudar o crescimento do microsseguro. No primeiro caso, porque as insurtechs poderão ampliar a cobertura do público-alvo do microsseguro, com as soluções inovadoras a serem testadas nos próximos anos que poderão ser incorporadas ao modelo de microsseguradora. Do mesmo modo, os recursos exigidos para organizar as seguradoras, em um novo modelo de faixas de capitais proporcionais, tendem a diminuir e ampliar o interesse no segmento de microsseguro.

O aprimoramento da educação financeira da população é outro capítulo chave. As pessoas precisam se conscientizar da perspectiva de encolhimento do papel social do Estado brasileiro, que hoje ainda é generoso.  As virtuais lacunas em espaços de proteção social abrem flancos para o seguro como um todo, incluindo-se o microsseguro. Não se pode esquecer que a economia de escala, no caso do microsseguro, é fundamental para atrair os corretores de seguros, principal canal de distribuição. As tecnologias digitais serão estratégicas e táticas nessa adesão dos corretores, hoje inconsistente. O que não quer dizer que continuam bem-vindos os correspondentes financeiros e o corretor de microsseguro, profissional com formação simplificada em relação ao corretor tradicional.

Por fim, vale lembrar que as mudanças nos paradigmas de convívio social, trabalho e circulação certamente trarão novas demandas por coberturas que poderão ser atendidas pelo microsseguro, desde que, repito, haja flexibilidade regulatória suficiente para adaptação dos produtos. O exemplo mais notável de produto que promete ganhar espaço e ser reformatado para atender à nova realidade é o seguro residencial. Esse ramo atualmente só pode ser vendido nas lojas de varejo se estiver formatado como microsseguro e, para se adaptar, precisará contar com maior flexibilidade regulatória. 

O vento muda de direção e fatos extraordinários acontecem com alguma frequência, como crises, baixo crescimento e agora a pandemia, mas existe uma perspectiva real de expansão de um seguro verdadeiramente inclusivo nos próximos anos e um encontro marcado com um público de milhões de consumidores aptos a estar protegido pelo seguro.

Solange Beatriz Palheiro Mendes* é advogada e diretora de Relações de Consumo e Comunicação da Confederação Nacional das Seguradoras (CNseg)


Fonte: CNseg.